Olhando ao longo de um par de horas para o lado de fora do meu quarto recém transmutado concluí que a grande virtude do colapso - possivelmente a única, talvez precise de mais um par de horas - é a aptidão para distinguir brutalmente do ontem o amanha. Os calendários, por exemplo, costumam ser acometidos do mal da neutralidade e acabam por esquecer de prover identidade aos tempos.

Sábio é o homem à beira da estrada enquanto nos deslocamos ao encontro do descanso: não confie nos números. Eles sempre dependem das legendas.

Já a memória padece de limitação oposta uma vez que não sabe existir senão afogada, feito o rato em tina funda, em meio ao mais movediço afeto. [ Não pensem que falo verdades. Apenas faço escolhas e é disso que se trata o afeto e é disso que se trata o pensar e é sabido que ha gentes que sabem mas não sabem imaginar ].

Pois bem. Ainda ontem me comovi com as primeiras palavras do primeiro dos pacientes: como è bello respirare. Depois me aturdi com a sentença médica que atribuía à tal cólera a perda dos sentidos humanos mais tenros: olfato e paladar. Ainda à luz do dia me feriu a ausência de carinho inerente ao intermezzo onde o tato também sabe matar.

O colapso não promete destino. O colapso é a última folha em branco do caderno metade em branco e metade riscado de ansiedade. O colapso é sempre a oportunidade de, ao ver-se incapaz de respirar, compreender a delícia de poder respirar, ao sentir-se alijado dos mais elementares sentidos agarra-los com força e sensatez para que jamais os levem embora e sobretudo, ao assimilar que ele próprio é sequela inconclusa do que o antecede, tratar de imaginar coisas novas.
poema Henrique Aires
voz e performance Manuela Libman
video-poema Henrique Aires e Manuela Libman.